segunda-feira, 24 de setembro de 2012

DOS MIl GUARANIES - diário



Diário

Segunda feira, mais um dia de férias. Estou semiacordado. Acordado e adormecido. O torpor do corpo elimina a importância das horas que se seguem. A mente anestesiada e cheia de uma gula satisfeita. A boca cetónica dos excessos calóricos. O estômago contorcendo-se em espasmos ligeiros de abundância. Um oásis de ilusão. Um fluxo interrompido de ideias. As ideias mortas.

O coração vivo, batendo mais que o normal. Há que metabolizar as carnes e os hidratos ingeridos. E outros alimentos. Os alimentos que mantêm a chama acesa. A chama da vida. Tal como a tocha dos jogos olímpicos viajando de mão em mão durante toda a sua vida útil até ficar depositada numa chama maior. A chama olímpica. Após o evento olímpico inicia-se um novo ciclo. Outro ciclo e outra tocha viajante.

Não serei o mesmo depois do evento a que assisti este fim de semana. Um casamento. Um casamento entre pessoas de países diferentes. Portugal e Paraguai. Um casamento de amor que arrastou até á Vieja Ciudad del Puerto pessoas de países como Salvador, Porto Rico, Estados unidos, Itália, Peru, entre outros.

A miscelânea de culturas resultou numa interacção espontânea de convivência salutar e sem reservas. Senti um alívio indefinível. Foi como no final da festa descalçar os sapatos. Os pés livres dos limites dos sapatos. Os pés crescendo num consolo urgente. Ébrio, imagino as mulheres a descalçar os sapatos de tacão alto. Mãos delicadas, finas, pegando nos sapatos e projetando-os para longe. Um arremesso sem qualquer piedade.

 É assim quando nos mexemos. Mexemo-nos e saímos de casa. Ao sair de casa abrem-se incontáveis possibilidades. As possibilidades são o desconhecido. Levo a mão ao bolso. Na mão encontro uma nota de 2000 Guaranies.



Juan Perez González

24 de Setembro de 2012
Vila Nova de Gaia
Portugal

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Ponto de tempo - primeira prova


Ponto de tempo
 

São onze horas. A noite caiu quase de supetão sobre o dia. Moribundo, cansado e arqueado o dia não resiste e sucumbe perante a noite. Adormecido, o dia, repousa no colo da lua luminosa. A luz dá lugar ao escuro, e a palete de cores que pintavam o dia embotoa-se, agora, quase tudo é preto. A luz da lua, insuficiente para iluminar a noite, recém nascida. A noite e a lua, juntas, de mãos dadas dão lugar ás sombras.
As sombras, vão evoluindo lentamente á medida que a lua namora a terra circulando em seu redor, tornado-se cada vez mais complexas. Há muitos anos que é assim. Um amor platónico, quase impossível, quase Shakespeare.
Há janela do prédio de cor ocre, o velhote fuma um cigarro vagarosamente. Deliciado. A boca ainda com o delicioso amargo do café. Os olhos visualizando nuvens ternas de fumo que se escapam do interior da casa do velho. O fumo sobe lentamente sobre a atmosfera quente de verão, misturando-se lentamente com o invisível. Finalmente a nuvem de fumo desaparece. A nuvem de fumo deixa de ser visível a olho nu. Os olhos, fixos no horizonte.
 A noite, enrolada em sons maiores, da bicharada. Algumas horas antes os decibéis de loucos ofuscavam a melodia harmoniosa dos bichos da natureza. Os ouvidos, sentados num harém de música. A língua seca, estala sobre o palato e cospilha contra os dentes moldando o ar em vibração nas cordas vocais: - Afinal também há natureza nesta cidade.
As mãos gordas, rugosas. Os dedos, tortos e grossos, tocam e apertam o nariz gordo para o coçar. As mãos palpando, sentindo, por fora da janela a correnteza húmida da brisa da noite. A brisa, um momento, um ponto de tempo, corporal, mas só visível aos olhos das mãos.
O nariz gordo, separando aromas do resto dos jantares e de mais qualquer coisa que só se consegue cheirar durante a noite. O cheiro a qualquer coisa é o perfume da noite. O cigarro está quase no fim, o velho, agarra com força o cigarro pelo filtro e esmaga a ponta contra o cinzeiro estéril poisado no parapeito da janela ,como de costume. Este cigarro foi um ponto de tempo. Este ponto de tempo não passou de umas passas de veneno. Este veneno é o cigarro, e a boca seca do vinho entornado na garganta do velho. E sobre a mesa da cozinha.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Tédio - primeira prova

Três dias passaram. Com torpor e inação do espírito. É aquilo a que se chama tédio. O tédio sente-se quando a vida é fugaz, célere, vertiginosa. Mas detém-se. Às vezes por instantes e de forma disrutiva ou anómala.

Sinto o corpo pesado, tumefato, sem vida por dentro. A astenia frena-me os movimentos, demoradamente - e o prazer abandona-me , deixo de o sentir, diante da vontade inútil de querer fazer algo sem o conseguir. Por incapacidade. Por abulia. por constrangimentos inexplicáveis. As costas queixam-se. Doem. sentem-se cansadas e tensas pelo indefinível excesso de carga que ocorreu ao longo de semanas. Estou deitado. Mas o deleite de que desfruto, neste momento, depressa se esvai. Porque, de supetão, sou fustigado por violentas e indizímeis contraturas, que me envolvem em dores horrorosas e abomináveis e que muito me afligem.

O mal, porém, nem sempre dura, como diz o prolóquio. E, neste caso, extinguiu-se com o retinir do telefone e a ansiedade de saber quem seria o interlocutor. Surge assim um novo despertar, com a auréola de um tédio promissor de permanência no tempo e no espaço. Enfim, regressa a despreocupação, a tranquilidade, o conforto, o bem-estar!...

Até já e obrigado

Através da janela vejo o mundo em movimento, pessoas calcorreando aleatóriamente. Cá dentro, o teu corpo, mesmo vazio de ti parece soluçar. Eu, no meio, entre um e o outro. Os dois em simultâneo, digo-te até já, digo-te obrigado.

Espelho




Os espelhos refletem com esplendor a alma do refletido no seu interior. E a cara, o nariz, os olhos, a boca. Estes elementos, todos, organizados. Fazem sentido. Quatro sentidos. Sensações diversas, únicas. O cheiro, a visão, a audição, o gosto. A Alma representada na expressão. A expressão dos olhos grandes, retóricos. A face pensativa, formulando perguntas. O espelho, estático, parado no tempo. As respostas, todas, refletidas no espelho. O espelho com as respostas. As respostas às perguntas formuladas. Algum tempo ao espelho. Incrédulo. O medo vai tomando conta de ti. Surge a agonia. As perguntas cessam. As respostas tomam conta de ti. Agora. O espelho. O espelhado. Os dois. Parados. Partilhando respostas.