quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Ponto de tempo - primeira prova


Ponto de tempo
 

São onze horas. A noite caiu quase de supetão sobre o dia. Moribundo, cansado e arqueado o dia não resiste e sucumbe perante a noite. Adormecido, o dia, repousa no colo da lua luminosa. A luz dá lugar ao escuro, e a palete de cores que pintavam o dia embotoa-se, agora, quase tudo é preto. A luz da lua, insuficiente para iluminar a noite, recém nascida. A noite e a lua, juntas, de mãos dadas dão lugar ás sombras.
As sombras, vão evoluindo lentamente á medida que a lua namora a terra circulando em seu redor, tornado-se cada vez mais complexas. Há muitos anos que é assim. Um amor platónico, quase impossível, quase Shakespeare.
Há janela do prédio de cor ocre, o velhote fuma um cigarro vagarosamente. Deliciado. A boca ainda com o delicioso amargo do café. Os olhos visualizando nuvens ternas de fumo que se escapam do interior da casa do velho. O fumo sobe lentamente sobre a atmosfera quente de verão, misturando-se lentamente com o invisível. Finalmente a nuvem de fumo desaparece. A nuvem de fumo deixa de ser visível a olho nu. Os olhos, fixos no horizonte.
 A noite, enrolada em sons maiores, da bicharada. Algumas horas antes os decibéis de loucos ofuscavam a melodia harmoniosa dos bichos da natureza. Os ouvidos, sentados num harém de música. A língua seca, estala sobre o palato e cospilha contra os dentes moldando o ar em vibração nas cordas vocais: - Afinal também há natureza nesta cidade.
As mãos gordas, rugosas. Os dedos, tortos e grossos, tocam e apertam o nariz gordo para o coçar. As mãos palpando, sentindo, por fora da janela a correnteza húmida da brisa da noite. A brisa, um momento, um ponto de tempo, corporal, mas só visível aos olhos das mãos.
O nariz gordo, separando aromas do resto dos jantares e de mais qualquer coisa que só se consegue cheirar durante a noite. O cheiro a qualquer coisa é o perfume da noite. O cigarro está quase no fim, o velho, agarra com força o cigarro pelo filtro e esmaga a ponta contra o cinzeiro estéril poisado no parapeito da janela ,como de costume. Este cigarro foi um ponto de tempo. Este ponto de tempo não passou de umas passas de veneno. Este veneno é o cigarro, e a boca seca do vinho entornado na garganta do velho. E sobre a mesa da cozinha.

1 comentário:

  1. Filipe, que belo texto. Leio e é como se engolisse o mundo e, dentro de mim, a cidade, a natureza, os cheiros as cores e os sons mimetizassem o sinto, o que sentimos... A exterioridade sentida em cada pormenor, compactando-a, separando-a exorcizando-a da sua existência sem sentido, tornando-a nossa, familiar e ao mesmo tempo estranha. Não sei se olhas imparcialmente e descreves desapaixonadamente o que vês, ou se na verdade é o teu vazio que se derrama sobre as coisas, deixando-as frias e nuas...
    Parabéns pela poesia das tuas palavras.

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